OPINIÃO: O Natal e a terceirização do cuidado
Por: Fernanda Cassain, médica
Às vésperas do Natal e do Ano Novo, um ritual silencioso se repete nas conversas privadas, especialmente em grupos de WhatsApp: o desconforto diante da ausência. Babás que não querem trabalhar, empregadas que pedem dispensa, profissionais avulsos que cobram mais caro para estar presentes em datas simbólicas. A queixa surge quase automática, como se a recusa fosse uma quebra de contrato moral invisível.
Mas talvez o incômodo revele algo mais profundo do que uma simples dificuldade logística.
Vivemos em uma sociedade que terceirizou o cuidado. Cuidar da casa, das crianças, da rotina e até das relações tornou-se uma função delegável. E, quando essa engrenagem falha, especialmente em datas que simbolizam encontro e pertencimento, o mal-estar aparece. Não porque o serviço não será feito, mas porque a dependência se torna visível.
O Natal, que carrega a ideia de família, pausa e convivência, expõe um paradoxo contemporâneo: para que algumas famílias celebrem juntas, outras precisam se separar. O tempo que falta a uns é comprado do tempo de outros. E isso é feito de forma tão naturalizada que a recusa causa estranhamento.
Há quem invoque a formalidade do vínculo empregatício como justificativa ética: “a carteira é assinada”. No entanto, a legalidade não esgota a questão moral. O direito de exigir presença não elimina a pergunta essencial: é justo fazê-lo? A norma pode autorizar, mas não necessariamente humaniza.
A inquietação talvez esteja menos na ausência da funcionária e mais na quebra de uma ilusão: a de que o cuidado pode ser completamente externalizado sem custo simbólico. Quando o Natal exige que alguém lave pratos, cuide de crianças ou mantenha a casa funcionando enquanto sua própria família celebra em outro lugar, o que se revela não é apenas uma relação de trabalho, mas uma hierarquia de tempos e afetos.
Também chama atenção o espanto diante dos valores cobrados por profissionais avulsos nesses feriados. Curiosamente, aceitamos sem questionar preços mais altos em hotéis, restaurantes e passagens aéreas. O desconforto surge quando o trabalho é doméstico, talvez porque ele ocupe um lugar ambíguo entre o profissional e o pessoal, entre o serviço e a intimidade.
Nesse ponto, a recusa em trabalhar ou o aumento do valor cobrado funcionam como um gesto simbólico: o tempo também tem valor. O afeto também tem custo. A vida privada de quem cuida não é menos importante.
Há ainda outra camada, mais silenciosa: a dificuldade de muitos adultos em sustentar, por algumas horas, o cuidado integral de seus próprios filhos. O que essa incapacidade temporária revela? Fragilidade? Exaustão? Ou uma organização social que desaprendeu a lidar com o cotidiano sem mediação constante?
Talvez o Natal, mais do que uma celebração, funcione como um espelho. Ele reflete nossas dependências, nossos privilégios e as assimetrias que preferimos não ver ao longo do ano. Quando alguém não pode estar presente para servir, somos confrontados com a pergunta que evitamos: quem sustenta o nosso conforto?
Se o Natal fala de humanidade, talvez seja o momento de lembrar que ela não se expressa apenas nos discursos, mas nas escolhas, inclusive naquelas que fazemos quando ninguém está olhando.
Fernanda Cassain é médica. Escreve sobre comportamento, cultura contemporânea e relações sociais.

